Um dos curiosos mandamentos da Torah é este que trata dos escravos hebreus. Adonai nunca desejou a escravidão, ainda menos entre seu povo. Porém, muitas leis foram dadas no sentido de regulamentar de forma mais justa algumas práticas humanas ainda existentes. A importância que YHWH vê nessa lei também é notável, uma vez que ela é a primeira, logo após os Assêret HaDibrot (10 Pronunciamentos), em Ex: 21:1-7.
Antes de tudo, é importante pontuar que a condição de escravidão entre servos e senhores hebreus era completamente diferente da relação entre escravos hebreus e senhores estrangeiros (como no Egito, por exemplo). A Torah requeria tratamento humanizado para todos (estrangeiro ou hebreu) e, ainda mais, que o escravo fosse aceito como um membro da comunidade (Gn 17:12), tendo direito ao descanso no Shabat (Ex 23:12, Dt 5:14, 12:12). Se o dono praticasse atos de crueldade para com seu servo, este receberia de imediato sua liberdade (Ex 21:26-27). De fato, o escravo hebreu era basicamente um serviçal, um empregado da casa, que trocava seu trabalho por moradia e alimentação durante um tempo determinado. No hebraico, a denominação para ambas as palavras (servo e escravo), inclusive, é a mesma: עֶבֶד eved.
O mandamento a que se refere este estudo aparece em Ex 21:1-11 e Dt 15:12-18. Começamos a análise por compreender essa instrução em seus detalhes.
1) “Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; contudo, no sétimo ano sairá livre, sem pagar nada pela liberdade.” | Ex 21:2
O paralelo aqui é bem claro e simples: ao homem foram dados seis dias para trabalhar; o sétimo é seu descanso. Essa é uma lei que vale tanto para o ser humano quanto para animais e até mesmo para a terra, que deve descansar do plantio à colheita, a cada 7 anos. (Ex 23:10-11, Lv 25:3-7).
2) “Mas se o escravo argumentar: ‘Eu amo a meu senhor, a minha mulher e a meus filhos, não desejo ficar livre’, “ | Ex 21:5
Apesar de os servos hebreus terem garatinda a sua liberdade ao final desse período, eventualmente, poderiam desejar dar continuidade a essa relação, devido à estabilidade e bom tratamento que recebiam. Por vezes, acabavam ainda constituindo família com outra serva também comprada. Nesse caso, a mulher e os filhos continuariam pertencendo ao senhor e não ao marido/servo. Assim, se o escravo optasse por manter sua família em vez da liberdade sem ela, continuaria a trabalhar após os seis anos.
Diante disso, se faria o seguinte: “o seu senhor o aproximará dos juízes, e o fará encostar-se à porta ou aos umbrais e lhe furará a orelha com uma sovela (ferramenta de perfuração), e ele se tornará seu servo/escravo (עֶבֶד eved) para sempre.” | Ex 21:6
Cada detalhe do verso acima traz informações preciosas para a compreensão do que ele realmente aponta. Primeiramente, analisemos no português, depois no hebraico.
• O JULGAMENTO/AS TESTEMUNHAS: após o escravo deixar claro que ama seu senhor e deseja, por livre vontade, permanecer servindo-o, ele é levado para os juízes (elohim), a fim de que a sua sentença seja proclamada e cumprida.
• O LOCAL DE PERFURAÇÃO: a porta ou os umbrais. O senhor deve levar seu servo à porta da casa para furá-lo. Isso não deve ser feito, por exemplo, sobre uma mesa ou mesmo um toco de árvore.
Há muitos detalhes que envolvem essa questão. Primeiramente, se o servo pudesse ser furado sobre uma mesa, uma cadeira ou mesmo um toco de árvore, ele precisaria ficar curvado ou abaixado, em uma posição de submissão em relação àquele que o fura. Porém, junto à porta, ele estará de pé, em uma posição digna e de igualdade perante seu senhor. O servo aceita a perfuração do seu corpo por amor, por desejo de continuar vivendo junto da mesma família. Dessa maneira, a sua escolha recebe o devido respeito e valor.
A pressão da sovela (perfurador) sobre o lóbulo da orelha também deixará uma marca sobre a porta. Possivelmente, até mesmo uma gota de sangue. Esse sinal ficará gravado para sempre, sendo um lembrete de que a vida do servo também passa a fazer parte daquela casa.
A perfuração na porta/umbrais é muito significativa, pois estes elementos fazem parte da ESTRUTURA da casa, são sólidos e duradouros. Ao contrário, um móvel é apenas um objeto, livre de qualquer relação com a casa, podendo ser TROCADO a qualquer tempo. E, no outro extremo, um toco de árvore nada mais é daquilo que RESTOU do elemento principal – a árvore –, ficando do lado de fora da casa, afastado da família, sem grandes serventias. Todos esses aspectos, naturalmente, aludem à importância do servo e desse ato.
• A PARTE DO CORPO: a orelha. No aspecto natural/físico, é fácil compreender o por quê. O lóbulo da orelha é uma das poucas áreas “livres” no corpo humano que, se transpassada, não representa perigo para a saúde geral do organismo. Em uma leitura mais elevada, a orelha/ouvido é o órgão da audição. É por meio dele que o servo recebe as ordens de seu senhor. Assim, ao colocar essa marca sobre a orelha é como se o servo deixasse claro que seus ouvidos foram dedicados à voz de seu mestre, obedecendo-o em tudo o que lher for ordenado.
• O RESULTADO DA AÇÃO: uma marca, uma perfuração permanente em um local visível, mostrando que esse servo ama seu senhor (e, eventualmente, a sua família constituída durante a servidão), não desejando viver afastado deles ou trocar sua vida por uma liberdade acompanhada das incertezas do mundo exterior.
Esse primeiro esquadrinhamento do texto, apesar de ser no plano literal (Pshat) já permite vislumbrar o que o próximo nível (Remez) alude. Resumindo as informações anteriores em tópicos, lemos que:
O servo se entrega, por amor, para ser furado.
O seu próprio senhor é aquele que o leva para esse momento.
A primeira atitude é levar o servo para os juízes, a fim de que a lei seja aplicada, mediante testemunhas.
A perfuração é feita sobre a madeira: uma porta ou os seus umbrais.
No momento em que o servo for furado, serão deixadas marcas nessa madeira: tanto da perfuração quanto do sangue.
O furo que o servo recebe é para sempre. Um testemunho de seu desejo de continuar como servo.
Servir ao seu senhor e estar com a família que ele constituiu (se for o caso), são para o servo valores maiores do que a liberdade do mundo exterior.
Yeshua é a nítida revelação do servo da orelha furada. Aquele que se entrega voluntariamente por amor (Gl 1:4, Tt 2:14, Jo 10:15, Mt 20:28), conduzido por YHWH (Is 53:10, Is 46:10, Mt 26:39,42). Levado para julgamento perante o poder político e religioso, sua sentença é prescrita e reivindicada, inclusive por uma multidão de testemunhas (Lc 22:66-71, 23:1-32). No madeiro, foram transpassados seus pés e mãos, e ainda, ferida a lateral de seu corpo (Jo 19:34). O sangue vertido é o cumprimento profético da primeira Pessach, quando o sangue do cordeiro foi passado sobre os umbrais das portas, livrando os primogênitos da morte (Ex 12:7,12-13). E todas as marcas que lhe foram afligidas permaneceram como testemunho de sua obra (Jo 20:20,27; Lc 24:39-40).
Nível SOD (Segredo/Oculto)
Avançamos agora para a análise em níveis mais profundos, no hebraico.
והגישו אדניו אל־האלהים והגישו אל־הדלת או אל־המזוזה ורצע אדניו את־אזנו במרצע ועבדו לעלם
O primeiro ponto que chama a atenção é a própria palavra רָצַע (ratsa), utilizada essa única vez na Escritura, significando (ele) furará. Nela são encontrados dois outros termos. E, não por coincidência, formam um conjunto completo de significações, apontando para todos os aspectos dessa lei, seja de maneira literal ou alusiva.
1º termo: עץ (etz) - árvore, madeira, tronco, poste de madeira
2º termo: ר (letra resh) - significado: cabeça (rosh)
Podemos fazer três leituras, em perspectivas diferentes, porém todas verdadeiras.
(ratsa) רָצַע = (ele) furará, pois a ר (rosh) cabeça do servo está sobre a עץ (etz) madeira;
(ratsa) רָצַע = (ele) furará, pois o ר (rosh) cabeça/senhor do servo o levará para a עץ (etz) madeira;
(ratsa) רָצַע = (ele) furará, pois o ר (rosh) cabeça da Criação/YHWH levará Seu Servo para o עץ (etz) madeiro.
É ainda extraordinário notar que a guematria de רָצַע é 360, um número que representa a figura geométrica do círculo (seus 360 graus); que, por sua vez, é a própria forma do furo que se faz na orelha!
O uso da palavra אֹזֶן ozen (orelha/ouvido) vai nos conduzir agora ao Sl 40:7 (40:6 nas bíblias cristãs). Aproximadamente, este será o texto lido nas traduções:
Sacrifício e oferta não desejaste; abriste-me os ouvidos; holocausto e oferta de expiação pelo pecado não reclamaste. (JFA atualizada)
Apesar de não estar escrito de forma explícita, fica entendido que a obediência pelo ouvir (abriste-me os ouvidos) é preferível ao erro/pecado, que deve ser corrigido com sacrifícios e ofertas.
Analisando o texto original em hebraico, encontramos uma outra perspectiva.
זבח ומנחה לא חפצת אזנים כרית לי עולה וחטאה לא שאלת
O verbo utilizado na expressão “abriste-me os ouvidos” é כָּרִ֣יתָ (karit) – do original כָּרָה (karah) – que significa cavar, abrir. Na Escritura, ele refere-se à ação de cavar poços, cisternas, sepulcros; aparecendo ainda, de forma figurada, como em “cavar/suscitar/buscar” o mal (Pv 16:27).
Cavar é retirar o material que está na superfície para alcançar uma parte mais funda ou ainda, algo que está além dessa mesma matéria (como a água de um poço, por exemplo, ou as pedras preciosas abaixo da terra). Assim, aplicado metaforicamente aos ouvidos, esse verbo representa retirar os obstáculos que estão à entrada para que a mensagem possa penetrar na mente/coração.
Uma segunda leitura, porém, permite ver algo mais. Desta vez, não de forma metafórica, mas literal. Aplicaremos o mesmo princípio utilizado no estudo em vídeo para compreender Ex 20:18, onde o povo VIU vozes/trovões e o som do shofar. Um aspecto interessante é que ambos os versos tratam do mesmo ponto: ouvidos/ouvir!
Na língua portuguesa, normalmente tratamos por “orelha” a parte externa do órgão auditivo, e “ouvido” sua área interna. (Apesar disso, ambos os termos são aceitos no âmbito médico para definir qualquer uma das áreas). No hebraico, há uma única palavra: אֹזֶן (ozen) para o singular, e אָ֭זְנַיִם (oznayim) para o plural. Não há distinção para uma referência à parte externa ou interna do sentido da audição. Assim, aplicando esse entendimento ao texto, lemos:
Sacrifício e oferta não desejaste; minhas orelhas cavaste/furaste/abriste; (…). (Sl 40:6)
Com essa leitura, a continuidade do texto reflete, de forma ainda mais clara, o que já havia sido percebido nos níveis anteriores:
Aquele que diz “‘Eis, eu venho’, no pergaminho do Livro está escrito sobre mim” (Sl 40:7);
Aquele que se regozija com a Vontade de YHWH, em cujo coração está Sua Torah (Sl 40:8);
Aquele que anunciou a justiça de YHWH às multidões (Sl 40:9);
Aquele que desejou servir e obedecer até o fim, tendo sido transpassado no madeiro, este é o Servo da Orelha Furada!
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